A Jornada de Sá e Faria e o Legado das Monções
- tribunaporto
- 22 de abr.
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A história de Porto Feliz se confunde, em muitos momentos, com a do próprio Brasil. Sabemos que as monções – expedições fluviais pelo rio Tietê e outros – partiam do antigo Porto de Araritaguaba, adentrando o sertão e ligando a capitania de São Paulo com o interior do Brasil. Por essa mesma via seguiram expedições militares para instalação da fortaleza de Iguatemi, no extremo sul da fronteira com as terras espanholas da América. Também, por esse mesmo trajeto percorreram diversas expedições científicas. Todas essas ações colaboraram para o povoamento, a exploração do interior e o conhecimento das terras luso-americanas.
Isso tudo a partir do século XVIII. Ainda nesse mesmo século, um explorador ajudou a firmar as fronteiras brasileiras com as vizinhas terras espanholas. Esse viajante chamava-se José Custódio de Sá e Faria e foi responsável pelo mapeamento das terras que explorou. Diz o Relatório Apresentado pelo Snr. Gentil Moura, publicado originalmente em 1905 (e em segunda edição em 1910) pela Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, com o título Exploração dos Rios Feio e Aguapehy, que:
Em 1774 o explorador Sá e Faria desceu o rio Tietê desde o porto de Araritaguaba (Porto Feliz) até a sua barra; e d’ahi, descendo o Paraná, foi à barra do Iguatemy por cujo curso subiu até o presidio de Nossa Senhora dos Prazeres. Alguns annos depois (em 1788 e 1789), o astronomo Lacerda e Almeida levantou as coordenadas do Tietê e Paraná, em virtude da preliminar estabelecida para determinação dos limites cias terras de Portugal com as de Hespanha.
Depois de muitas idas e vindas de luso-brasileiros e hispano-americanos, de um lado a outro, desrespeitando o Tratado de Tordesilhas, houve a necessidade de se rever essas fronteiras a partir do princípio do uti possidetis, ou seja, a posse é de quem utiliza a terra. Em outras palavras, quem de fato povoa a terra teria o direito sobre ela. Novos tratados foram feitos, mas somente em 1777 o Tratado de Santo Ildefonso revalidou o seu antecedente Tratado de Madri (1750), pondo fim, naquele momento, na questão das fronteiras das colônias americanas de Portugal e Espanha. É nesse contexto que o mapeamento de Sá e Faria se fez como documento de suma importância para reafirmar as fronteiras brasileiras.
José Custódio de Sá e Faria produziu ainda um Diário, constando detalhadamente a sua viagem. Na primeira parte desse Diário consta o relato do trajeto percorrido durante quatro dias a pé, entre São Paulo e Porto Feliz (Araritaguaba). Jorge Pimentel Cintra e Rafael Henrique de Oliveira produziram um artigo intitulado “José Custódio de Sá e Faria e o mapa de sua viagem ao Iguatemi” no qual analisam “o primeiro trecho do Diário de José Custódio de Sá e Faria, concretamente o caminho feito por terra, em quatro dias, entre São Paulo e Araritaguaba (Porto Feliz), que prosseguiria por rios até o Forte de Iguatemi”.
Nesse trabalho, apontam que “os trabalhos, mapas e ações de Custódio ganham relevância e não é surpresa, como se constata em seu diário, que o Morgado de Mateus tenha acompanhado toda a tropa até a aldeia em Pinheiros, tenha feito orações em conjunto na igreja de Pinheiros e tenha mandado saldar a turma com tiros de artilharia, mostrando assim todo o seu apoio ao destacamento que se dirigia ao Iguatemi”. O Morgado de Mateus (Dom Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão) foi capitão-general e governador da Capitania de São Paulo, entre os anos de 1765 a 1775 e responsável por muitas mudanças e inovações dentro do espírito do despotismo esclarecido do Marquês de Pombal. Sobre essa figura histórica há dois livros muito interessantes: Um Morgado no Imaginário de um Marquês e Morgado de Mateus, um Fidalgo Português na Casa Bandeirante”, ambos de autoria do historiador português radicado em Cotia, João Barcellos.
A série Documentos Interessantes para a História de São Paulo, publicada em 95 volumes a partir do ano de 1894, por iniciativa do intelectual Antonio de Toledo Piza, apresenta em um de seus volumes (o de número 8, publicado em 1895) a transcrição de uma ordem para a providência dos necessários provimentos para a expedição de Sá e Faria, tido no documento com o posto de Brigadeiro. Diz o documento:
Ordem pª no Porto de Araraytaguaba se faça apromptarem os novos aprestos e vários viveres p.a a prezte expedição q’ se está apromptando. Ordeno q’ no Porto de Araraytaguaba se faça apromptar p.a a conducta do Brigadr.º José Custodio de Sá e Faria, e mais Tropa q’ o deve acompanhar p.a a Praça do Guatemy, tudo o q’ consta da relação junta por mim rubricada, advertindo q’ na canoa em que for o d.° Brigadr.º, e nas dos mais Off.es se porão suas barracas de baeta p.a reparo dos tp.os como he costume, procedendo-se em tudo com as neeessr. as Clarezas p.a na Real Fazd.a se fazerem os ditos, pagamentos. - S. Paulo a 23 de Agosto de 1774. Com a rubrica de S. Ex.a
Em anexo, uma lista com canoas, duzentos alqueires de feijão (aproximadamente, 5 mil quilogramas), duzentos alqueires de farinha, oito alqueires de arroz (pouco menos de duzentos quilogramas); oito arrobas de açúcar (120 quilogramas) e oitenta medidas de água ardente. Interessante verificar essa lista para se ter uma ideia da alimentação desses viajantes. Possivelmente, a farinha e o feijão eram misturados (o que hoje chamamos de virado à paulista). Há uma quantidade muito menor de arroz em relação ao feijão. A água ardente (cachaça) servia como bebida, anestésico, antisséptico entre outras finalidades.
Uma das vantagens em se conhecer mais sobre essa viagem é o fato de que o caminho realizado de São Paulo a Porto Feliz pode suscitar um interesse maior no aproveitamento turístico ou mesmo de fortalecimento de uma identidade cultural e patrimonial. Os autores Jorge Pimentel Cintra e Rafael Henrique de Oliveira salientam esse aspecto:
Essa determinação do traçado de caminhos torna-se interessante em uma época em que se procede ao tombamento de trechos de caminhos como, por exemplo, a Estrada Real (Minas Gerais), o Caminho do Viamão (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), o Caminho do Mar, o Caminho do Padre José e a Calçada do Lorena (São Paulo), como se pode ver pela lista do Iphan. E mesmo o tombamento de um traçado sinuoso pelas vias da cidade, como é o caso do Caminho Histórico Glória-Lavapés, em São Paulo, como se pode ver, por exemplo, em Conpresp.
A história de Porto Feliz não é apenas um capítulo isolado do passado, mas um elo vital na construção do território e da identidade brasileira. As expedições que partiram de suas margens, como a de José Custódio de Sá e Faria, é um exemplo disso. Hoje, resgatar esses caminhos não só enriquece nossa memória coletiva, como abre possibilidades para o turismo cultural e a valorização patrimonial. Afinal, cada canoa que descia o Tietê carregava não apenas provisões, mas os alicerces de um país.
Carlos Carvalho Cavalheiro é professor, mestre em educação, escritor, pesquisador e colaborador da TRIBUNA
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