“Tens o nome liga do à conquista / Dos mais brutos e ínvios sertões / E teus filhos o sangue pau lista / Dos valentes heróis das monções”. É assim que o Hino de Porto Feliz relembra o passado da cidade. Em verdade, uma releitura da História, ou melhor, uma das versões.
As ações dos paulistas do passado ganharam, no início do século XX, o status de “ato civilizatório”, conquistando os brutos sertões e colonizando o interior do país. Obvia mente que a História crítica atual problematiza tal concepção. Afinal, a escravização de indígenas ou a invasão de territórios de outros povos não podem ser confundidas com processo de civilização. Ademais, trata-se de uma versão eurocêntrica que considera a Europa como o centro de tudo.
Por essa visão, a História acontece por iniciativa dos europeus. Por isso, num passado recente, dizia-se que a História do Brasil começou em 1500, data em que os portugueses (europeus) chegaram a esta terra. É como se dissesse que os indígenas que aqui viviam não eram “humanos o suficiente” para “produzir História”.
Fazia parte do projeto colonizador colocar-se como superior aos demais povos: indígenas, asiáticos, africanos... Com isso, estimulavam-se as ações de invasões a outras terras e povos sem que isso viesse a produzir consciências pesadas.
Um artigo publicado no jornal sorocabano Cruzeiro do Sul, de 25 de abril de 1920, primeira página, enaltece essa visão que lia as ações dos antigos pau listas como um ato “civilizatório”. Com o título de “Bandeirantes” o artigo começa com as seguintes palavras:
“Em Porto Feliz, antiga Araritaguaba, se inaugura amanhã o monumento comemorativo das partidas das Monções, que daquele lugar iam, Tietê abaixo, levar ao bugre indomado e ao castelhano viajor a fé do seu Deus e a glória da sua Pátria. Assim, o paulista, arrojado, guerreiro e piedoso, rude e leal, ia domando o bugre, guerreando o castelhano, procurando ruínas, negociando, abrindo lavouras, fazendo penetrar nos sertões o domínio da sua pátria e firmando nossos direitos à grandiosa terra que hoje forma os Estados centrais e do sul do Brasil, que sem eles, estariam em poder dos espanhóis.”
Assim, o “bandeirante” paulista tinha por missão domar o bugre. Ou seja, o indígena era tido como um animal selvagem e xucro que deveria ser “domado”. Além disso, os espanhóis eram inimigos porque impediam o crescimento da pátria brasileira. Ocorre que até aquele momento esse sentimento “patriótico” não existia. Não havia um sentimento de nação ou pátria brasileira. O interesse dos paulistas não estava ligado ao engrandecimento do território brasileiro, a despeito do lema de nosso brasão: “Longe levei as fronteiras do Brasil”.
O interesse do paulista estava relacionado simplesmente aos recursos que poderiam prover-lhe uma vida melhor. Se o indígena que seria escravizado pelo paulista estava além das fronteiras do Tratado de Tordesilhas, isso não seria impedi mento ao paulista que não reconhecia tal acordo. Da mesma forma, se os me tais ou pedras preciosas brotassem apenas no lado espanhol da América do Sul, os paulistas também não seriam impedidos de buscar tais riquezas. Não pelo bem da “pátria” ou mesmo de Portugal. Mas para sua própria sobre vivência.
O artigo continua ainda com as seguintes frases:
“O governo do dr. Altino Arantes mais um grande serviço prestou ao Estado, mandando fazer monumentos, obras comemorativas desses fatos históricos, únicos verdadeiramente paulistas, verdadeiramente brasileiros. E, no antigo e rude porto ‘Feliz’ vemos hoje as grandiosas escadarias e o belo monumento comemorativo da partida das Monções.”
O monumento em questão é o dos Bandeirantes, localizado no Parque das Monções. O interesse do governador Altino Arantes, que veio pessoalmente inaugurar o monumento e o parque, está ligado à consolidação de uma “memória” que enaltecesse os feitos antigos dos paulistas — “verdadeiramente brasileiros” — justificando o domínio político dos cafeicultores na República Velha. Altino Arantes era político ligado a essa ala do poder.
A reflexão sobre a releitura da história nos leva a questionar as narrativas dominantes e a reconhecer as múltiplas vozes que foram silenciadas ao longo do tempo. Entender o contexto e as motivações por trás das ações históricas é fundamental para construir uma visão mais justa e inclusiva do nosso passado. Somente as sim poderemos aprender com os erros cometidos e promover uma sociedade mais consciente e crítica, que valorize todas as culturas e histórias que formam a identidade do Brasil.
Carlos Carvalho Cavalheiro é professor, mestre em educação, escritor, pesquisador e colaborador da TRIBUNA
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