“A destruição do passado — ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas — é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tomam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e com piladores”. O texto não é de minha autoria. Não poderia ser, pois não teria a erudição necessária para compô-la. É do historiador Eric Hobsbawn.
A ideia contida nesse trecho nos impulsiona a pensar — e a questionar — algo sobre o nosso tempo. A começar pela afirmação de que a destruição do passado é um dos fenômenos mais característicos do século passado e que, eu diria, ainda contamina o nosso século. Obviamente que em termos concretos não há como destruir o passado. Afinal, conceitualmente, o passado se compõe dos fatos e ações de já ocorreram. Portanto, não existe maneira de evitá-lo e, menos ainda, de destruí-lo.
Entretanto, Hobsbawn explicita o melhor entendimento dessa afirmação ao dizer que se trata, em verdade, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência social à das gerações anteriores. Não se trata literalmente de destruir o passado, mas antes, de afastarmo-nos dos vínculos que relacionam o tempo atual com o pretérito.
Uma interessante minissérie de TV, chamada Códex 632, produzida pelo Globoplay em parceria com a RTP e produtora portuguesa SPi, lançada no Brasil em outubro de 2023, apresenta, como narrativa tangencial ao cerne da trama, a história de uma professora universitária e seus alunos que defendem a destruição de monumentos e estátuas que remetam à opressores do passado. Apesar de entender o posicionamento dessa personagem, que se coaduna com uma vertente ideológica atual (e atuante), a derrubada de monumentos se caracteriza como a destruição de uma fonte de análise histórica.
Sem a fonte, a análise se perde e com ela a experiência social — e crítica — do passado. É como imaginar que a destruição das pirâmides do Egito antigo resultaria na anulação de séculos de exploração dos faraós do passado. Ou que a implosão dos prédios de Auschwitz produziria o efeito de pulverização dos crimes nazistas.
Ao contrário, no mundo negacionista de hoje é possível que a ausência mate rial desses monumentos, construídos sim sobre a opressão dos povos, seja motivo para o surgimento da desconfiança da existência, no passado, de todo o horror que representam.
O industrial e escritor Siegfried Ellwanger, com o pseudônimo de S. E. Castan, publicou diversos livros negando a existência do Holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial. Um de seus mais famosos livros, Holocausto — Judeu ou Alemão?” defendia abertamente a inexistência da execução de judeus pelos nazistas em campos de concentração como Auschwitz. Siegfried foi condenado por crime de racismo — o primeiro caso no Brasil, salvo engano — pelo Tri bunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A sua sentença de condenação foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2003. Ele faleceu em 2010.
Outra parte importante do trecho escrito por Hobsbawn refere-se ao ofício de historiador. Há quem acredite que o historiador é um contador de histórias ou um memorialista. Ou, ainda, um militante desta ou daquela causa. Não é nada disso. O historiador é um cientista (a História é uma ciência humana) o que quer dizer que ele segue regras e métodos rigorosamente. A análise das fontes históricas pressupõe a interpretação baseada em referenciais teóricos e em um trabalho de interligação de contextos, fatos e dados com o objetivo de compor um tecido no qual se possa vislumbrar uma representação do passado.
Aliás, o que suscita as pesquisas do historiador são as perguntas do presente. Por isso a preservação de fontes históricas —– incluindo os monumentos — são tão importantes. Afinal, como disse Eric Hobsbawn, “os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tomam--se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores”.
Carlos Carvalho Cavalheiro é professor, mestre em educação, escritor, pesquisador e colaborador da TRIBUNA
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